O Teatro do Concreto chegou ao mundo de mãos dadas com o século 21. Engajado na curiosidade genuína de qualquer processo de invenção artística, fez sua existência a partir de um posicionamento afirmativo sobre as questões e, principalmente, sobre as contradições deste século principiante. Floresceram juntos. Em quase duas décadas, viram surgir e se consolidar noções como pós-dramático, performativo, representatividade, lugar de fala, descolonização e tantas outras ideias que mudariam os rumos da prática teatral contemporânea (e do pensamento acerca dela) assim como das práticas de comportamento e de convívio social.
Para se configurar como coletivo, o Teatro do Concreto assume diversos desses valores e paradigmas. Não estamos falando necessariamente de estilo, mas de intencionalidades: a utilização do depoimento pessoal dos atores como gerador de dramaturgia, a opção política e estética pelo processo colaborativo, o questionamento da obviedade dos espaços formatados em suas funções utilitárias, a encenação no espaço urbano como estratégia de evocação de memórias e paisagens perdidas ou soterradas, a desestabilização dos suportes tradicionais da cena. Procedimentos de uma investigação engendrada por artistas interessados em fazer teatro e em aprender a fazer teatro juntos.
Aprender, para nós que somos latinos, é uma aventura de resistência. Nossos resquícios de colonização tendem a confundir nossos processos de autonomia identitária numa espécie de ficção acerca da natureza do poder, em que a potência de agir é tomada como capacidade exterior à vontade. Nesse sentido, a antropofagia opera como dispositivo-chave nos processos de pesquisa e aprendizagem do grupo, levando sua força concreta “às bordas da potência ou do desejo” (para citar Gilles Deleuze) e posicionando esta força “contra todos os importadores de consciência enlatada” (para citar Oswald de Andrade).
Devoraram, na aventura de aprender e resistir, o Teatro da Vertigem, o Teatro Oficina, as imagens de Kazuo Ohno, de Pina Bausch, a insistência de José Perdiz, do candomblé e de tantos outros guerreiros, colocando suas criações, ao mesmo tempo, perto e distante das suas ancestralidades. A cada trabalho, o Teatro do Concreto expõe suas raízes: sul-americanas, periféricas, miscigenadas, sincréticas. Olha para o território que ocupa [Brasil / Brasília] não apenas em sua dimensão política, mas na percepção das ondas sísmicas geradas pelas dinâmicas do seu povo, de suas relações com as tradições, das práticas coletivas de ocupação das terras e ruas. Na mítica do grupo, todo criador é ao mesmo tempo um antropófago e um sismógrafo.
No campo da atuação e da direção, criar não se trata exatamente de um ato em seu sentido de ação pura, mas de uma atitude. Atitude é uma palavra de origem italiana utilizada inicialmente para designar a postura de uma figura em um quadro ou escultura. Está, portanto, etimologicamente associada à captura da expressividade de um corpo em performance, um corpo engajado. Seja como coro, como caricatura, como festa, como vertigem ou como mímesis hipernaturalista, atuar e dirigir no Concreto é uma atitude – que adquire ainda, neste contexto, um sentido de engajamento político.
Na perspectiva do imaginário coletivo acerca de Brasília, em que a monumentalidade da cidade simboliza alegoricamente a inércia e a falta desta atitude (que transborda nas criações do grupo), entendemos com mais clareza porquê a escolha do nome Concreto é um conceito afirmativo. E porquê o grupo liderou o movimento de resistência à permanência do Teatro Oficina Perdiz em seu território de origem. Ou porquê fez de sua primeira reunião oficial uma leitura dramática do texto “Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos”, de Plínio Marcos, à luz dos refletores do Panteão da Pátria, demarcando com ironia seu desejo de pertencer.
Talvez seja isso: o Teatro do Concreto faz teatro para pertencer; um pertencimento que é crítico e que desterritorializa, que descoloniza os apagamentos promovidos pela História e pela Modernidade. O teatro do Concreto revela belezas submersas e feiuras marginais. Mobiliza o espectador a colocar o próprio corpo em jogo, levando-o a descobrir que assistir também é uma atitude antropofágica e sismográfica. O encontro com o outro em cena é sempre uma revelação: de si, do território e das contradições que nos colocam juntos nesse espaço-tempo de século. Enquanto houver memória, haverá luta; enquanto houver luta, haverá teatro. “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.
Glauber Coradesqui
* Frase final retirada da canção “Sujeito de Sorte”, de Belchior.