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Fundado em 2003, o Teatro do Concreto é um grupo de Brasília que reúne artistas interessados em dialogar com a cidade e seus significados simbólico e real por meio da criação cênica. Assume, desde sua origem, a diversidade e a pesquisa como princípios de gestão e composição artística, mobilizando criadores de diversas regiões do Distrito Federal e aprofundando a interação com diferentes artistas e áreas do conhecimento. Suas criações se orientam pela perspectiva do processo colaborativo e se caracterizam, principalmente, pela elaboração de uma dramaturgia própria, pela radicalização no uso de depoimentos pessoais, pela investigação da cena no espaço urbano, pela relação com as práticas da performance e pela busca por diferentes modos de engajar o espectador.

 

Ao longo de sua trajetória, o grupo estreou 9 espetáculos e intervenções cênicas, publicou 3 obras de referência para o campo da pesquisa teatral e realizou diversos projetos de interação com a comunidade os quais extrapolam a dimensão dos palcos, consolidando-se como referência para o teatro de grupo na região Centro-Oeste. Ganhou projeção nacional com a circulação dos espetáculos Diário do Maldito (2006) – que recebeu o Prêmio SESC do Teatro Candango nas categorias de Melhor Atriz e Melhor Cenografia – e Entrepartidas (2010) – que recebeu o Prêmio SESC do Teatro Candango nas categorias de Melhor Espetáculo, Melhor Direção, Melhor Ator e Melhor Dramaturgia.

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NÓS SOMOS O CONCRETO

Nós smos

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SEIS ENSAIOS CURTOS

Sendo a memória aquilo que nos constitui como história e continuidade, que nos fomenta como espécie – fascinados que somos pelas nossas narrativas – lembrar faz parte do nosso instinto de sobrevivência. As imagens, as sensações e as palavras são, ao mesmo tempo, o tutano das lembranças e a nossa forma de organizá-las. A loucura é uma organização aleatória e descontrolada das memórias que acumulamos, ou que perdemos. O ator depõe para lembrar. Ao fazê-lo, tenta aproximar sua mítica pessoal da nossa mítica como humanidade. Expõe e se arrisca na tentativa de dizer ou fazer algo particular e interessante, pessoal e universal. O ator atualiza a virtualidade da memória no próprio corpo, que já é em si memória. Não há memória sem vida. É preciso viver, viver não é preciso.

três

Um grupo de artistas apresenta um espetáculo sobre amor e abandono. Um grupo de idosos estrangeiros dança até o esgotamento físico da vontade de girar. Um grupo de refugiados atravessa o oceano em um bote inflável. Um grupo de juízes apartidários condena um preso político. Um grupo de cientistas mostra ao mundo a primeira foto de um buraco negro. Um grupo é um desejo que converge no tempo: uma ousadia. Um grupo é o universo infinito das múltiplas partes que o constituem, sendo cada parte em si já um universo infinito de outras múltiplas convergências. O tempo de um grupo é necessariamente o presente: seus dilemas, seus avessos, suas impaciências, suas conquistas e seu desejo de futuro – até não ser. Em um grupo, coloco a minha mão sobre a sua para que possamos fazer juntos aquilo que eu não sei fazer sozinho.

quatro

Um grupo em números: Quantas horas de passadão de cena? Quantas páginas lidas e decoradas? Quantas contas atrasadas pela informalidade? Quantas linhas de ônibus noturnos? Quantos passos caminhados nas periferias de Brasília para chegar em casa depois de uma rotina de ensaios? Quantas idas ao banheiro antes de uma estreia, ou de uma apresentação banal – isso existe? Quantos batimentos por minuto? Quanto desejo de revolução? Quantos quilômetros voados? Quantas cenas jogadas no lixo? Quantas aprovações de material gráfico? Quanta água para lavar as xícaras de café das reuniões? Quanto de mim? Quanto do outro? Quanto tempo dura esse espetáculo? – Poderia me dizer que horas são? – Nossa, é tarde. Perdemos a noção da hora. – Perdemos o ônibus. – Posso dormir na sua casa? – Claro. Noites em claro.

cinco

A espectadora atleta percorre a cena em maratona. Ela se move, se desloca, se incomoda, se permite. Deseja ver e ouvir de perto, seja dentro de um ônibus, da cozinha de alguém ou de um teatro que é oficina. Testemunhamos o início de uma revolução no campo da percepção das espectadoras mediada pelo advento das tecnologias de virtualização e robotização das realidades – uma revolução de ordem semelhante àquela provocada por Gutemberg quando do surgimento da imprensa. A possibilidade da experiência habita agora a ponta dos dedos: o movimento de pinça nos distinguiu como espécie. A espectadora atleta vai ao teatro para expandir seus movimentos e duvidar do condicionamento da sua percepção. A generalização pelo feminino é uma escolha política (nota de rodapé).

seis

Glauber Coradesqui é pesquisador e dramaturgo, professor do Instituto Federal Fluminense. Mestre em Arte pela Universidade de Brasília, é autor dos livros "Experiência e Mediação de Espetáculos" e "Canteiro de Obras: notas sobre o teatro candango".

Seis

O teatro é uma prática de repetição e invenção, como todos os processos da natureza. Primeiro, duas atrizes ensaiam. Ensaio é o espaço no tempo em que o erro e o acerto, o cuidado e o risco se desafiam na mesma intensidade; é o buraco por onde o diretor olha o que as atrizes entregam. Depois, duas atrizes se expressam. Expressão é aquilo que se arranca de si para dar ao outro em gesto e palavra, ainda que o silêncio em cena também seja voz; a expressão tem grande poder de regeneração. Em seguida, duas atrizes choram. O choro é a verdade física da entrega, ou da dor, ou da memória, ou do controle das glândulas que seguram os olhos no nariz; o nariz sente o que os olhos marejados não veem. Por fim, duas atrizes exageram. O exagero é a alegoria latina da precariedade e da miséria. Gente não é para morrer de fome.

dois

A paisagem da cidade é diferente da paisagem da montanha. Os sons são diferentes – e a luz. A cidade arranha o céu que a montanha, por outro lado, revela. Revelar, do latim “tirar o véu” – ou em outras palavras livremente escolhidas por dedução etimológica: mostrar os olhos. Parados no silêncio da montanha viram os olhos do céu. Na cidade, repararam o céu todo arranhado enquanto caminhavam: caminhavam como um ato de criação. Criar é perceber e dar forma para então revelar. Gavião é bicho de voar. Gente é bicho de arranhar. Ouviram dizer que uma família de gaviões fizera seu ninho num prédio de Santos. Foi quando fizeram teatro para desarranhar o céu.

um

ENSAIO

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HISTÓRIA E PENSAMENTO

O Teatro do Concreto chegou ao mundo de mãos dadas com o século 21. Engajado na curiosidade genuína de qualquer processo de invenção artística, fez sua existência a partir de um posicionamento afirmativo sobre as questões e, principalmente, sobre as contradições deste século principiante. Floresceram juntos. Em quase duas décadas, viram surgir e se consolidar noções como pós-dramático, performativo, representatividade, lugar de fala, descolonização e tantas outras ideias que mudariam os rumos da prática teatral contemporânea (e do pensamento acerca dela) assim como das práticas de comportamento e de convívio social.

 

Para se configurar como coletivo, o Teatro do Concreto assume diversos desses valores e paradigmas. Não estamos falando necessariamente de estilo, mas de intencionalidades: a utilização do depoimento pessoal dos atores como gerador de dramaturgia, a opção política e estética pelo processo colaborativo, o questionamento da obviedade dos espaços formatados em suas funções utilitárias, a encenação no espaço urbano como estratégia de evocação de memórias e paisagens perdidas ou soterradas, a desestabilização dos suportes tradicionais da cena. Procedimentos de uma investigação engendrada por artistas interessados em fazer teatro e em aprender a fazer teatro juntos.

 

Aprender, para nós que somos latinos, é uma aventura de resistência. Nossos resquícios de colonização tendem a confundir nossos processos de autonomia identitária numa espécie de ficção acerca da natureza do poder, em que a potência de agir é tomada como capacidade exterior à vontade. Nesse sentido, a antropofagia opera como dispositivo-chave nos processos de pesquisa e aprendizagem do grupo, levando sua força concreta “às bordas da potência ou do desejo” (para citar Gilles Deleuze) e posicionando esta força “contra todos os importadores de consciência enlatada” (para citar Oswald de Andrade).

 

Devoraram, na aventura de aprender e resistir, o Teatro da Vertigem, o Teatro Oficina, as imagens de Kazuo Ohno, de Pina Bausch, a insistência de José Perdiz, do candomblé e de tantos outros guerreiros, colocando suas criações, ao mesmo tempo, perto e distante das suas ancestralidades. A cada trabalho, o Teatro do Concreto expõe suas raízes: sul-americanas, periféricas, miscigenadas, sincréticas. Olha para o território que ocupa [Brasil / Brasília] não apenas em sua dimensão política, mas na percepção das ondas sísmicas geradas pelas dinâmicas do seu povo, de suas relações com as tradições, das práticas coletivas de ocupação das terras e ruas. Na mítica do grupo, todo criador é ao mesmo tempo um antropófago e um sismógrafo.

No campo da atuação e da direção, criar não se trata exatamente de um ato em seu sentido de ação pura, mas de uma atitude. Atitude é uma palavra de origem italiana utilizada inicialmente para designar a postura de uma figura em um quadro ou escultura. Está, portanto, etimologicamente associada à captura da expressividade de um corpo em performance, um corpo engajado. Seja como coro, como caricatura, como festa, como vertigem ou como mímesis hipernaturalista, atuar e dirigir no Concreto é uma atitude – que adquire ainda, neste contexto, um sentido de engajamento político.

Na perspectiva do imaginário coletivo acerca de Brasília, em que a monumentalidade da cidade simboliza alegoricamente a inércia e a falta desta atitude (que transborda nas criações do grupo), entendemos com mais clareza porquê a escolha do nome Concreto é um conceito afirmativo. E porquê o grupo liderou o movimento de resistência à permanência do Teatro Oficina Perdiz em seu território de origem. Ou porquê fez de sua primeira reunião oficial uma leitura dramática do texto “Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos”, de Plínio Marcos, à luz dos refletores do Panteão da Pátria, demarcando com ironia seu desejo de pertencer.

 

Talvez seja isso: o Teatro do Concreto faz teatro para pertencer; um pertencimento que é crítico e que desterritorializa, que descoloniza os apagamentos promovidos pela História e pela Modernidade. O teatro do Concreto revela belezas submersas e feiuras marginais. Mobiliza o espectador a colocar o próprio corpo em jogo, levando-o a descobrir que assistir também é uma atitude antropofágica e sismográfica. O encontro com o outro em cena é sempre uma revelação: de si, do território e das contradições que nos colocam juntos nesse espaço-tempo de século. Enquanto houver memória, haverá luta; enquanto houver luta, haverá teatro. “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.

Glauber Coradesqui é pesquisador e dramaturgo, professor do Instituto Federal Fluminense. Mestre em Arte pela Universidade de Brasília, é autor dos livros "Experiência e Mediação de Espetáculos" e "Canteiro de Obras: notas sobre o teatro candango".

 

 

 

* Frase final retirada da canção “Sujeito de Sorte”, de Belchior.

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PERCURSOS

Linha do Tempo

2019

 

Circula com o espetáculo ENTREPARTIDAS nas cidades de Florianópolis (SC), Salvador (BA), Curitiba (PR) e Porto Alegre (RS) pelo edital de circulação da BR Distribuidora/Petrobras. Realiza programa educativo do espetáculo e ações de acessibilidade voltada para espectadores com deficiência visual e auditiva.

Estreia no SESC Pompéia, em São Paulo, o espetáculo FESTA DE INAUGURAÇÃO, em colaboração com João Dias Turchi, Guilherme Bonfanti e André Cortez.

Contato
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